domingo, 17 de agosto de 2008

II

Enquanto descia as escadas, decidia se iria ou não olhar para o relógio. Ela tinha consciência de que estava atrasada então pra quê ratificar essa desgraça? “Mas existe uma grande diferença entre muito atrasada e pouco atrasada” pensava ela. De qualquer maneira, ela estava bastante tempo fora do programado. Detestava quando as coisas fugiam de seu controle, o que vinha acontecendo com tanta freqüência quanto seus sonhos. Saber as horas a ajudariam a se reprogramar, reestruturar seu próprio dia e tarefas, além de admitir que estava errada. Olhar para o relógio seria lembrar que estava fora dos planos, admitir o erro e ao mesmo tempo continuar nele. Ainda assim, ela olhava perturbada para as paredes do corredor, esperando ver acidentalmente um relógio... Só para não precisar se culpar depois.

Às vezes, chegava perto de compreender o porquê de Comunicação Social. Gisela sempre gostou muito da mídia, em geral. Na infância, não via desenhos animados, escutava a Voz do Brasil. Embora não compreendesse muito do que era dito, alguma coisa prendia sua atenção. Agora, ela achava incrível a maneira com que a televisão movimentava informações, como era fácil manipular e modificar um pensamento através de linhas tortas... E embora essa admiração a dominasse, não era de seu feitio criar, produzir nada. Ela não se enxergava com um futuro dentro daquela área. Gisela se contentava em ouvir, ver e, conseqüentemente, absorver tudo que lhe era passado.

Na portaria, Luís a esperava sentado, olhando para rua com aquele mesmo olhar vago, mas que, para Gisela, sempre transpareceu determinação. Quando saiu pelo portão, ela mal olhou para Luís, apenas continuou seu passo em direção ao ponto de ônibus, a alguns metros dali.

- Perdemos no mínimo três ônibus, não é? ela disse ofegante.

- Bom dia para a senhora também...

- E eu perdi mais duas aulas de Teoria. Aquele professor já não vai com a minha cara.

- Concordo, o dia está lindo...

- Por que você não foi sem mim? Sempre acaba perdendo aulas por minha culpa.

- Eu gosto de deixar as coisas ao seu mérito.

Talvez o único real amigo de Gisela, Luís crescera junto dela, sempre tratados como irmãos. A diferença era que ele tinha 20, ela 19. Seus pais trabalhavam na mesma loja de automóveis. A diferença era que o pai dele era gerente, o dela, segurança. Apesar de ter todas as regalias que um filho pode querer, Luís era de humilde personalidade, além de amigo onipresente. A consideração que tinham um pelo outro era idêntica, desde sempre. Com exceção do segundo ano, quando ele achou que gostava de Gisela. Chegou a escrever uma carta com nove folhas de declaração, mas acabou reescrevendo e mandando para a Bia. Foi um fracasso, ela gostava de outro. Mas ele não se deu por vencido e no terceiro ano conseguiu namorar Bia por seis meses. Até perceber que era só mais um equívoco de sua cabeça. E que só não era maior do que o equívoco de ter pensado em se declarar para Gisela.

- Qual é a piada do dia? ele perguntou enquanto sentavam no último banco do ônibus.

- Piada? O que deu em você hoje?

- Você precisa me fazer rir.

- Nunca precisei, você sempre veio com o seu riso pra me contagiar, bobo. disse Gisela apertando as bochechas de Luís. E outra coisa, eu tenho cara de palhaça por acaso?

- Meu pai morreu esta manhã, Gi.

“Eu sou péssima nisso.” Foi a primeira e única coisa que ela conseguiu pensar.

- Mas você não precisa dizer nada. Sabe muito bem que todos nós já esperávamos, disse Luís com uma apatia inquietante.

- Esperávamos? Você me disse que ele estava melhorando! E sua mãe, como está? ela disse, incomodada com o semblante tranqüilo de Luís.

- Ela ainda não sabe, não fiz questão de ligar. Ela não ligava pro pai nem no dia do aniversário dele...

- Você devia contar isso pra alguém... Não acredito que esteja tão imparcial assim!

- Estou contado para você.

- E o quê isso me diz respeito? Você devia estar no mínimo triste, como pode ficar assim?

- Não me importa se te diz respeito. Só queria que você soubesse, já que não quer saber, então esqueça.

- A única coisa que quero saber é de onde saiu esse monstro que está do meu lado, disse Gisela olhando pela janela fingindo não se importar.

- Sua cabeça é livre de preocupações. Minha intenção não era mudar isso.

- O que você quer dizer com ‘livre de preocupações’?

- Quero dizer que você está com tudo nas mãos, não precisa correr atrás de nada. Na verdade, nunca precisou...

- Olha quem fala... Deixa de ser hipócrita, Luís! disse Gisela já angustiada com aquela situação.

- Quero dizer que deveria começar a se preocupar com o que se passa com você, e não com o que deixo de fazer.

Com aquela frase, Luís conseguiu deixá-la estática. Como ela ainda não tinha notado? Era óbvio que ela estava em completo desespero. Ele só falava quando entendia e conhecia perfeitamente tudo aquilo que queria dizer. E nunca falaria isso para ela, nunca. Gisela não chegou nem a cogitar a possibilidade de Luís estar certo. Apesar de triste por saber que o amigo passava por um momento tão delicado, descobrir que ele se importava com a morte do pai a deixou mais aliviada. Ela odiava mudanças bruscas. Dizia que odiava com a intenção óbvia de maquiar o medo. Gisela gostava era de se sentir confortável, e pra ela, esse tipo de sensação só era conquistada depois de uma grande rotina. Qualquer variação a levaria de volta para o começo. Era só deixar tudo sobre controle.

O ônibus pára no sinal vermelho. E depois de uma longa pausa, Gisela diz:

- Então eu não me importo com nada?

- Não foi bem isso que eu quis dizer, disse Luís agora claramente abalado.

- Você devia voltar pra casa e descansar. Eu pego a matéria para você.

Luís faz um sinal positivo com a cabeça e automaticamente se levanta. Gisela até faz menção de algumas frases de consolo, agora já formadas em sua cabeça, mas opta por deixá-lo ir embora sem mais delongas. “Eu não poderia ter sido mais complacente a ele” pensa Gisela.

Um comentário:

Anônimo disse...

Adorei o texto, de verdade! Além de muito bem escrito, não reparei um só erro, ele é simples se tratando de complexidade. Queira me desculpar se interpretei mal, mas adorei, gostei das personagens, da descrição.

Sendo curta ou sendo conto está ótimo! Eu já sabia que você escrevia muito bem mas fiquei feliz e estupefata com o texto.
Exagerei? Não, não acho.
Ah, ver isso virando uma curta seria bem legal - dica.