segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

V

- Por que você trata as coisas desse jeito?
- Que jeito?
- Do seu jeito.
- E deveria tratá-las como? Da maneira que você quer?
- Aposto que as coisas funcionariam melhor, pelo menos --
- "Pelo menos não sairiam do controle", blá, blá, blá. Música para os meus ouvidos...


- O que está fazendo?
- Acendendo um cigarro, quer um trago?
- Não, obrigada. Espero que isso te mate.
- Também espero. A propósito, adoro gente educada...
- Você não tem medo do que podem pensar sobre você?
- Claro que não, o pulmão é meu. Alimento-o com o que bem entender.
- Depois não venha pedir minha ajuda.
- A última coisa que quero é sua ajuda.
- Por que não me deixa controlar, então?
- Eu vou deixar...


- O que é isso?!
- Um calibre .38 e minha têmpora, nunca viu?
- Já, mas --

Ouve-se um disparo.

Gisela acorda, desta vez, não assustada.
Apenas abre os olhos e se depara com o teto de seu quarto iluminado pelo sol que acabara de nascer. Na sua frente, a TV desligada. Ao seu lado, o controle.
Gisela toma o controle e liga a TV.


fim

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

IV - Pt. 2

Gostaria de pedir profundas desculpas aos poucos que acompanham esta história. Estive em um período de recesso mental. Felizmente, acredito já ter dado um ponto final nele.

Obrigada aos que se preocupam com o final deste conto.

Gisela se levanta e vai em direção à cozinha. Luís vai atrás e diz:

- Sem Atreyu?! Então me parece que você precisa de um defensor, disse se aproximando de Gisela.

- Muito obrigada, mas acho que você tem condição de tudo agora, menos defender alguém...

- Minha auto-estima foi lá no céu agora.

- Ah, eu tenho certeza de que esses sonhos vão passar, dizem que quanto mais pensamos neles, maiores são as chances de voltarem à noite.

Enquanto isso, pega uma garrafa d'água na geladeira e dois copos. Ela os enche e deixa a garrafa em cima da mesa, junto com os copos cheios.

- É, diziam o mesmo pra mim quanto ao Bicho-Papão.

- E sua ironia sempre intocável, não, Luís?

- Força do hábito.

Luís se vira para a geladeira com a garrafa na mão e a guarda de volta.

- A cada dia que passa, conheço um novo hábito seu, diz Gisela.

- Sou uma pessoa versátil, me atualizo freqüentemente. Isso costuma ser um charme, concorda?

- Se você diz, quem sou eu pra discordar?

Gisela bebe toda a água em apenas um gole e empurra o copo de Luís na direção dele:

- Não vai querer?

- Não. Acabei de atualizar minha idéia.

Aquela atitude dele, aparentemente sem sentido, a incomodou profundamente. Ela já não conseguia mais reconhecer a pessoa com quem lidava:

- Você devia era atualizar sua vida! Ainda não consigo aceitar o que está fazendo, disse enfurecida saindo da cozinha com o copo d'água ainda em mãos.

Luís fica parado na cozinha por um tempo pensando sobre o que ela acabara de dizer. Nunca fora do tipo que retomava uma decisão dessas importantes... Talvez fosse a hora certa pra mudar. Ele pega o copo cheio em cima da mesa e vai em direção à sala dizendo:

- Ô, Gi!, e essa água aqui? Ainda tá de pé, não é?

Ao atravessar o portal da cozinha, se depara com a sala, um copo vazio na mesa de centro em frente à TV e a porta entreaberta.

Em cima do braço do sofá, um bilhete escrito à mão:

"Só você pode me se salvar."



Ao chegar em casa, chega exausta. Problemas psicológicos, principalmente dos outros, sempre davam muito trabalho. Ela joga a mochila na mesa da cozinha e vai para o banheiro. Ao sair, o rosto molhado e a cara de nada refletem suas possíveis preocupações libertadas.

Provável que sua mãe já estivesse dormindo e, como sempre, acordá-la era a única coisa que Gisela não tinha como intenção. No entanto, também sempre, era a primeira a acontecer:

- Tem resto de janta na geladeira! Esquenta e come! Nada de dormir de estômago vazio, isso atrapalha o sono!

- Tá bem, Mãe, obrigada...

- Parece até que sou mulamba! Já pedi pra você não me acordar à toa! Às vezes me arrependo de fazer as coisas por você, nunca recebo nada em troca...

“...Daqui a pouco vou começar a cobrar!” Esse texto, Gisela conhecia melhor do que a própria mãe. Enquanto ela continuava o discurso revoltado, Gisela esquentava a comida, lavava a louça, tomava banho, escovava os dentes... Era o tempo certo pra tudo. Parecia até que a velha ficava no quarto contando no relógio tempo suficiente pra que a filha fizesse tudo que queria. Ao terminar, automaticamente sua mãe voltava a dormir. Apesar de saber disso, Gisela sempre passava pela porta do quarto de Dona Ana antes de deitar, só para ter certeza de que mais nada a perturbaria.

Depois de ter tudo sobre controle, ela vai para seu quarto. Lá estava ele, assim como tinha deixado pela manhã. Acende a luz para confirmar de que tudo está mesmo no seu devido lugar. Às vezes se perguntava o porquê de fazer isso... Talvez tivesse um medo inconsciente de que as coisas fugissem dos conformes enquanto estivera fora. No entanto, encontrava sempre tudo no seu devido lugar. A mochila ficava mesmo pela cozinha, se a deixasse no quarto, acabava se esquecendo de levá-la para a faculdade no dia seguinte.

Gisela apaga a luz do quarto e se deita na cama. Como sempre, ainda lhe faltava uns quinze minutos de olhos abertos para que o sono chegasse. Enquanto isso, ela ficava esvaziando a cabeça, tentando não pensar em nada, coisa que sabia ser impossível. As tentativas eram muitas, assim como os fracassos. Era sempre uma coisa boba que vinha para atrapalhar quando ela estava quase lá. Primeiro excluía as imagens, depois os sons, logo não lembrava de mais nada. Agora vinha a parte mais difícil, acabar com a escuridão, aquela cortina preta que se fechava junto com suas pálbebras. Ela persistia, mas parecia que seu gás acabava...

E só assim então conseguia dormir.

terça-feira, 26 de agosto de 2008

IV - Pt. 1

As horas de aula se passam e Gisela se sente estática desde que entrara em sala. O professor falava e as palavras passavam pela sua cabeça como o mais fino fio de nylon: sem diferença alguma. Mais uma aula, outro intervalo de tempo jogado fora.As frases eram rascunhadas mecanicamente no caderno, como se ela estivesse em outra dimensão. Os tempos de aula se acabam e Gisela sai da faculdade. Dali a algumas horas o sol se poria, mais uma vez, pondo fim em um dia vazio.

Gisela checa seu celular na esperança de ter recebido uma mensagem inusitada ou uma ligação de número desconhecido, mas nada. No fundo de tela do seu celular, uma foto que Luís batera. Ao vê-la, lembra da situação delicada do amigo e decide, instantaneamente, visitá-lo antes de ir para casa.

Ao descer do ônibus, começa a repassar seu tão excitante dia. Ela costumava fazê-lo sempre, e ultimamente, todos tinham começos semelhantes: seus confusos e perturbados sonhos. Vozes sem rosto e aparentemente femininas travavam verdadeiras disputas verbais durante suas noites de sono. Após isso, hoje fora o atraso, a péssima notícia de Luís e os desordeiros da faculdade. Sem esquecer do comentário infame de Maria. “Quem precisa de tratamento é ela”, pensava Gisela. Por fim, as aulas eram sempre tão iguais que ela não se dava o luxo de repassá-las, era desnecessário.

Chegando no portão da casa de Luís, Gisela para por alguns segundos olhando para o interfone. Ela julgava o que seria mais correto: Tocar ou chamá-lo pelo nome? ; Dizer que levava a matéria ou que estava ali para consolá-lo? Sendo assim, tocou o interfone e chamou alto por Luís. Nenhuma resposta, seja no interfone ou nos berros. O portão se abre e Gisela entra. Quando chega ao andar de Luís, ela avista a porta de seu apartamento entreaberta. Gisela se aproxima cautelosamente. Entra na sala e avista Luís sentado de frente para a TV desligada com o controle remoto na mão esquerda.

- Achei que você viesse mais tarde, diz ele.

- Só vim até aqui para te deixar as matérias. Você vai à aula amanhã?

- Não sei. O velório será na parte da manhã, talvez dê tempo.

- Você precisa de mais tempo para você mesmo. Não se preocupe com as aulas, vou evitar atrasos para te repassar a matéria sem hiatos. Você sabe que pode contar comigo...

- Admiro a sua compaixão, mas essa tentativa de consolo foi um fiasco.

- Sabe também que sou péssima nisso, disse Gisela rindo. Posso me sentar?

- Claro, a casa é nossa.

Gisela senta ao lado direito de Luís e diz:

- Eu te admiro muito, sabia?

- Admiro a sua admiração.

- Ainda mais com esse humor tão imprevisível...

- Estou treinando para me formar em gelo. Quanto você cobra pela hora-aula?

- Para você, que é amigo, posso fazer um preço bem camarada.

- Correspondente à sua admiração?

- Vou analisar seu caso.

Apesar de continuar com aquele ímpeto característico na voz, o olhar de Luís se perdia fixado na TV desligada. Ele funcionava como uma marionete. Gisela gesticulava ao máximo enquanto falava, tentando desviar os olhos de Luís daquilo que parecia prendê-lo há muito tempo, mas as tentativas eram fracassadas. Até que, sem mais o que fazer, Gisela estala os dedos da mão direita à frente dos olhos dele, que subitamente parecem retornar à vida:

- O que foi?! ele pergunta assustado.

- Desculpa interromper seu transe, mas já estava farta de falar com o “Mister Robocop”.

- Eu que lhe devo desculpas, minha cabeça está no piloto automático.

- Nada mais do que eu esperava. O Márcio nos deus outros dois livros. Resenhas para o final do mês. Aqui estão os nomes, disse Gisela entregando um pedaço de papel com os títulos.

- Muito agradecido, dona moça. Mas isso não vai me servir mais.

- Não me diga que...

- Digo sim, tenho de arranjar um emprego. Não quero viver de favores. Amanhã, após o velório, vou até a corretora para vender essa joça e encontrar um aluguel barato.

- Mas você acabou de me dizer que tentaria ir à aula, falou ela abismada com o que ouvira.

- Pois acabo de mudar de idéia.

- E o que lhe fez mudar?

- Não sei, e também não me importa. É óbvio que é a melhor maneira de ajeitar as coisas. Fui à loja do papai, conversei com o sucessor dele no cargo. Disse que vai me arrumar um contrato de três meses. Estou desistindo, Gi.

- Admiro a sua desistência.

- Não é novidade para mim...

- Então vai viver de bicos? Indagou Gisela tentando mudar o ritmo da conversa.

- Pretendo.

- E quando os bicos acabarem...?

- Isso pode ficar pra depois. Tenho maiores preocupações presentes.

- Que tipo de preocupações?

- Mamãe quer que eu fique com o dinheiro. Segundo ela, era da vontade de papai.

- E isso é preocupação desde quando?

- Desde quando não quero mais depender da boa vontade alheia.

- Tenha dó, Luís! Você é filho, não inquilino!

- Mas estou quase lá...

Mania chata aquela de Luís. Complexo de inferioridade que chegava a dar nos nervos. Era um rapaz agradável e até certo ponto bonito. Os donos daquele olhar perdido eram um par de bilhas negras, que conseguiam, de maneira indizível, realçar sua pele levemente morena. O nariz notável, porém de contornos confortantes. Seus lábios pareciam desenhados à mão e um sorriso que lembrava muito o de seu pai.

- Agora é minha vez de desistir.

- Ora, mas se não é a “Senhora Persistência” largando de mão a sua primeira missão?!

- Já pensou em procurar contrato com o Bozo?

- Ele me acha bom demais, eu ofuscaria o brilho dele.

- É uma pena, você tem talento.

- Morrerei desconhecido, assim como outros tantos...

- E tirando este bate-bola cotidiano, como foi seu final de semana?

- Passei com meu pai... No hospital, murmurou Luís voltando seu rosto para a tela preta. E o seu?

- Ei, ei, rapaz! Minha pergunta foi infeliz, mas não me troque novamente, disse Gisela virando com as mãos o rosto de Luís de volta para sua direção. Meu final de semana foi bem. Tenho ido dormir cedo, quer dizer, cochilar cedo.

- Por que “cochilar”?

- Por causa de sonhos, pesadelos, sei lá como chamar isso...

- Freddy Krueger ou Peter Pan?

- Para mim, ambos soam como pesadelo.

- Tudo bem. Ahn, deixe-me ver... História sem Fim ou Cinderela?

- Acho que tá mais pra História sem Fim. Só que sem o Atreyu.

domingo, 24 de agosto de 2008

III - Pt. 2

“...Começa hoje o processo que será realizado para verificar a denúncia de que presos estariam recebendo tratamento ‘vip’. Agentes encontraram telefones celulares e radio transmissores nas lixeiras do presídio...”

- O que eles fazem é mágico, não é? falou Gisela.

- Eles quem? pergunta Miguel.

- Esses homens da TV.

- Como assim? indagou Paula.

- Fazem milagre com as informações. Quem não está cansado de saber que os presidiários estão mais seguros do que nós? Que lá dentro comem caviar enquanto tem gente aqui morrendo de fome? Eles reciclam notícias a todo momento, e ninguém se importa... Ninguém nem repara.

- E você considera isso mágico, disse Lara sendo irônica.

- Se pudesse fazer metade do que fazem com a cabeça de uma pessoa usando apenas cinco minutos do horário nobre, eu me sentiria no mínimo poderosa.

- Acho muito injusto você dizer que a mídia é totalmente manipulada, diz Paula.

- Não disse que a mídia é manipulada. Verdade é que nós não enxergamos nada, eles sim, mas apenas o que querem. Quis dizer que somos cegos e a mídia é míope.

- E você continua dando ouvidos a essa ‘reciclagem’, disse Lara.

- É... Me sinto confortável sendo cega. Apesar de algumas vezes ter vontade de enxergar pelo menos um pouco...

- Estou morrendo de fome, vou pegar alguma coisa pra comer na lanchonete, diz Miguel, vem comigo, Paula?

- Vou sim, também estou com fome. Vamos, amor?

Lara se levanta sem nem precisar concordar, e os três vão até a lanchonete. Enquanto isso, Gisela está terminando seu almoço. Maria ficou na mesa, o que chega a ser estranho, já que era impossível enxergá-la longe dos outros. Agora, aquele silêncio constrangedor imperava no local. Obviamente constrangida, Gisela tentava se concentrar novamente no noticiário, ao passo que Maria olhava para o nada, como sempre.

Depois do almoço terminado, Gisela se sentia na obrigação de dizer alguma coisa, idear um assunto para acabar com aquela situação ruim. Assim que Gisela começa a pensar em uma conversa apropriada, Maria se adianta e diz:

- Você precisa de um tratamento.

- O quê? disse Gisela assustada com o comentário.

- Minha mãe tinha isso.

-‘ Isso’ o quê?!

E antes mesmo que ela pudesse continuar a expressar sua indignação com a crítica, a garota, até então, apática se levanta e vai atrás dos outros três.

- Ótimo, agora sou chamada de doente por alguém que não fala, diz Gisela inconformada.

Sem hesitar e pensar em se despedir, Gisela também se levanta da mesa. Guardou seus pertences e se encaminhou irritada para a próxima aula.

domingo, 17 de agosto de 2008

III - Pt. 1

Na faculdade era tudo muito diferente. Pessoas anormais com hábitos anormais, pensamentos anormais e feições anormais faziam parte do aprendizado cotidiano. Gisela foi obrigada a conviver com cenas que nunca pensou nem presenciar. “Um verdadeiro degradeé de moldes”, ela chamava. As roupas eram equivocadas, as palavras tinham cheiro de batom, os homens transpiravam esmalte, o palco podia ser comparado a um picadeiro e, dentro dele, Gisela não chegava a ser nem o número menos aclamado. O desdém fritava suas veias quando ela entrava lá. Pelo menos o lugar era agradável. Um bosque gigantesco com bancos aconchegantes. Dois chafarizes, por sinal sempre desligados, um à esquerda e outro um pouco mais à frente, na direita. As instalações do prédio de Comunicação eram precárias, mas nada de muito feio...

Ao passar pela lanchonete, avistou alguns companheiros de classe sentados na mesma mesinha de sempre. Aqueles tais ‘companheiros’ não se importavam muito em ficar dentro de sala, eram importantes demais pra isso. A fome e, novamente, o relógio vieram . Se Gisela parasse para comer, provavelmente perderia mais um tempo de aula. Enquanto julgava pela milionésima vez as figurinhas descoladas de sua turma, inconscientemente decidia se iria ou não parar pra almoçar, afinal ainda faltavam alguns passos até a escada que levava até sua sala.

Eram três moças e um rapaz. Maria, uma verdadeira maria-vai-com-as-outras. Ela não falava muito, parecia um ímã de geladeira que andava com eles para tentar enfeitar alguma coisa em sua vida; Lara e Paula, duas recém-namoradas. Paula sempre aparentava simpatia, coisa que chegava a irritar e Lara, totalmente o oposto, o que também irritava; e, por fim, Miguel, um metido a conquistador, por assim dizer. Ele tinha o rosto singelo e bem definido, assim como todo o corpo. Era bonito, mas seu constante ar de superioridade o tornava repugnante.

Gisela os achava patéticos...

Gisela queria ser um deles.

E então a fome venceu. Na mesma hora, ela mudou a direção de seus passos para uma mesa vazia. Tirou da mochila o almoço que sua mãe havia preparado e por algum motivo conseguiu esquecer o relógio. Apesar de tudo, ela conseguia se sentir bem ali. O que às vezes a incomodava profundamente era aquele clima apaziguador que os alunos faziam questão de tentar cultivar, principalmente os seus companheiros de classe. Laços fortes de amizade foram formados logo no primeiro período, e ela não participava de nenhum deles. O Luís sempre lhe fora o suficiente. Ao colocar a primeira garfada de comida na boca, Miguel a chamou para sentar-se com eles. Ele berrava como se quisesse chamar mais atenção do que o normal. Primeiro ela fingiu não ouvir, mas ele insistiu em continuar gritando seu nome e ela, para evitar maiores aborrecimentos, levantou meio desajeitada, pegou suas coisas e foi para a mesa deles como se estivesse se escondendo de alguma coisa:

- Não precisava chamar tão alto assim, eu estava a apenas duas mesas de distância.

- Você não viria se eu não fizesse escândalo, disse Miguel.

- E por que eu não viria?

- Você é quem devia saber. Desde o início do período você nos evita. Nós não somos bandidos, sabia?

- Eu sei que não, murmurou Gisela voltando a comer e tentando fugir do assunto.

- Ela deve ter seus motivos para não querer ficar conosco, disse Lara segurando na mão de Paula.

E tinha mesmo. Além dos defeitos berrantes de cada um deles, o namoro de Paula e Lara não a deixava confortável. Gisela tinha uma reação diferente a cada vez que presenciava algum afeto entre as duas. Ao vê-las de mãos dadas ali, ela sentira vontade de colocar pra fora as poucas garfadas de comida que já tinha engolido. Mas isso não era constante. Às vezes sentia profunda admiração por não se importarem com rabos de olhos e cochichos ao andarem juntas pelos corredores da faculdade. Outrora, um verdadeiro nojo tomava conta de Gisela só de pensar que elas se tocavam. E Lara notava isso. Começou seu namoro com Paula pouco antes do fim do primeiro período e, desde então, Gisela se escondia para falar com os quatro. Propositalmente, Lara acariciava Paula quando Gisela estava perto, só para desfrutar da perturbação dela.

- Pelo amor de Deus, disse Paula, não é à toa que a menina evita vocês... É tanto egocentrismo e hostilidade que qualquer um ficaria intimidado.

- E você pare de falar o nome de Deus em vão, Paula! Senão é aí mesmo é que ela cria um clube contra a gente.

- Em vão, Miguel? Vou à missa todo domingo, tenho que ter no mínimo o direito de clamar por Ele a hora que eu quiser.

- Fala assim como se fosse obrigada a freqüentar a igreja, disse Lara.

- Não sou, vou porque quero e você sabe disso. Por essas e outras, posso chamá-lo e com certeza não será em vão. Não concorda, Gi?

Outra coisa que a incomodava. Era inaceitável que alguém como a Paula pudesse se considerar crente com tanta convicção. Será que ela fechava os olhos para tudo o que fazia?

- Uhum, disse Gisela desviando o olhar para o noticiário da tarde, que passava na TV da lanchonete.

II

Enquanto descia as escadas, decidia se iria ou não olhar para o relógio. Ela tinha consciência de que estava atrasada então pra quê ratificar essa desgraça? “Mas existe uma grande diferença entre muito atrasada e pouco atrasada” pensava ela. De qualquer maneira, ela estava bastante tempo fora do programado. Detestava quando as coisas fugiam de seu controle, o que vinha acontecendo com tanta freqüência quanto seus sonhos. Saber as horas a ajudariam a se reprogramar, reestruturar seu próprio dia e tarefas, além de admitir que estava errada. Olhar para o relógio seria lembrar que estava fora dos planos, admitir o erro e ao mesmo tempo continuar nele. Ainda assim, ela olhava perturbada para as paredes do corredor, esperando ver acidentalmente um relógio... Só para não precisar se culpar depois.

Às vezes, chegava perto de compreender o porquê de Comunicação Social. Gisela sempre gostou muito da mídia, em geral. Na infância, não via desenhos animados, escutava a Voz do Brasil. Embora não compreendesse muito do que era dito, alguma coisa prendia sua atenção. Agora, ela achava incrível a maneira com que a televisão movimentava informações, como era fácil manipular e modificar um pensamento através de linhas tortas... E embora essa admiração a dominasse, não era de seu feitio criar, produzir nada. Ela não se enxergava com um futuro dentro daquela área. Gisela se contentava em ouvir, ver e, conseqüentemente, absorver tudo que lhe era passado.

Na portaria, Luís a esperava sentado, olhando para rua com aquele mesmo olhar vago, mas que, para Gisela, sempre transpareceu determinação. Quando saiu pelo portão, ela mal olhou para Luís, apenas continuou seu passo em direção ao ponto de ônibus, a alguns metros dali.

- Perdemos no mínimo três ônibus, não é? ela disse ofegante.

- Bom dia para a senhora também...

- E eu perdi mais duas aulas de Teoria. Aquele professor já não vai com a minha cara.

- Concordo, o dia está lindo...

- Por que você não foi sem mim? Sempre acaba perdendo aulas por minha culpa.

- Eu gosto de deixar as coisas ao seu mérito.

Talvez o único real amigo de Gisela, Luís crescera junto dela, sempre tratados como irmãos. A diferença era que ele tinha 20, ela 19. Seus pais trabalhavam na mesma loja de automóveis. A diferença era que o pai dele era gerente, o dela, segurança. Apesar de ter todas as regalias que um filho pode querer, Luís era de humilde personalidade, além de amigo onipresente. A consideração que tinham um pelo outro era idêntica, desde sempre. Com exceção do segundo ano, quando ele achou que gostava de Gisela. Chegou a escrever uma carta com nove folhas de declaração, mas acabou reescrevendo e mandando para a Bia. Foi um fracasso, ela gostava de outro. Mas ele não se deu por vencido e no terceiro ano conseguiu namorar Bia por seis meses. Até perceber que era só mais um equívoco de sua cabeça. E que só não era maior do que o equívoco de ter pensado em se declarar para Gisela.

- Qual é a piada do dia? ele perguntou enquanto sentavam no último banco do ônibus.

- Piada? O que deu em você hoje?

- Você precisa me fazer rir.

- Nunca precisei, você sempre veio com o seu riso pra me contagiar, bobo. disse Gisela apertando as bochechas de Luís. E outra coisa, eu tenho cara de palhaça por acaso?

- Meu pai morreu esta manhã, Gi.

“Eu sou péssima nisso.” Foi a primeira e única coisa que ela conseguiu pensar.

- Mas você não precisa dizer nada. Sabe muito bem que todos nós já esperávamos, disse Luís com uma apatia inquietante.

- Esperávamos? Você me disse que ele estava melhorando! E sua mãe, como está? ela disse, incomodada com o semblante tranqüilo de Luís.

- Ela ainda não sabe, não fiz questão de ligar. Ela não ligava pro pai nem no dia do aniversário dele...

- Você devia contar isso pra alguém... Não acredito que esteja tão imparcial assim!

- Estou contado para você.

- E o quê isso me diz respeito? Você devia estar no mínimo triste, como pode ficar assim?

- Não me importa se te diz respeito. Só queria que você soubesse, já que não quer saber, então esqueça.

- A única coisa que quero saber é de onde saiu esse monstro que está do meu lado, disse Gisela olhando pela janela fingindo não se importar.

- Sua cabeça é livre de preocupações. Minha intenção não era mudar isso.

- O que você quer dizer com ‘livre de preocupações’?

- Quero dizer que você está com tudo nas mãos, não precisa correr atrás de nada. Na verdade, nunca precisou...

- Olha quem fala... Deixa de ser hipócrita, Luís! disse Gisela já angustiada com aquela situação.

- Quero dizer que deveria começar a se preocupar com o que se passa com você, e não com o que deixo de fazer.

Com aquela frase, Luís conseguiu deixá-la estática. Como ela ainda não tinha notado? Era óbvio que ela estava em completo desespero. Ele só falava quando entendia e conhecia perfeitamente tudo aquilo que queria dizer. E nunca falaria isso para ela, nunca. Gisela não chegou nem a cogitar a possibilidade de Luís estar certo. Apesar de triste por saber que o amigo passava por um momento tão delicado, descobrir que ele se importava com a morte do pai a deixou mais aliviada. Ela odiava mudanças bruscas. Dizia que odiava com a intenção óbvia de maquiar o medo. Gisela gostava era de se sentir confortável, e pra ela, esse tipo de sensação só era conquistada depois de uma grande rotina. Qualquer variação a levaria de volta para o começo. Era só deixar tudo sobre controle.

O ônibus pára no sinal vermelho. E depois de uma longa pausa, Gisela diz:

- Então eu não me importo com nada?

- Não foi bem isso que eu quis dizer, disse Luís agora claramente abalado.

- Você devia voltar pra casa e descansar. Eu pego a matéria para você.

Luís faz um sinal positivo com a cabeça e automaticamente se levanta. Gisela até faz menção de algumas frases de consolo, agora já formadas em sua cabeça, mas opta por deixá-lo ir embora sem mais delongas. “Eu não poderia ter sido mais complacente a ele” pensa Gisela.

sábado, 16 de agosto de 2008

I

- É incrível como você gosta de dormir...

- Não é questão de gosto, e sim de necessidade.

- E pra quê dormir por tanto tempo?

- Será que você não sabe que oito horas é o tempo mínimo que precisamos pra recuperar a integridade física e mental perdida em um dia rotineiro?

- Sim, por isso mesmo, você dorme desde dez horas da noite.

- Vou dormir cedo por sua culpa... E mesmo assim, oito horas são necessárias para um qualquer aí de vida pacata. Minha vida não é pacata, preciso de mais do que oito horas de descanso!

- Pára de falar besteira! Graças a Deus, a minha vida é tranqüila e sem grandes preocupações. Ninguém manda ficar procurando sarna pra se coçar! Um dia, Ele vai te castigar por todos esses pensamentos infames que bloqueiam a tua cabeça.

- Tá bem, então. Só peça pra ele vir me castigar depois de meio-dia, beleza? E olha, chega de discussão, você vai acabar atrapalhando meu sono.

- Você não sabe o que diz... Parece que não tem medo de nada... Mas você ainda vai temer tudo que nega fazer parte da sua realidade.

- Digo o mesmo para você, criança. Abrir os olhos pra algo que não seja a TV, talvez te livre dessa alienação maldita!

- Incrível o tamanho do seu preconceito... Qualquer um que tiver fé em alguma coisa é alienado?

- Uma coisa é acreditar e ter fé em algo. Outra, totalmente oposta, é viver louvando cegamente isso, ignorando tudo que acontece à sua volta. Existem outros pensamentos, outros ideais... Você é quem devia pensar no seu preconceito. Ou melhor, nos seus preconceitos. É primitivo demais julgar tudo que é novo como errado.

- E daí?! Olhe para você... Pelo menos eu acredito em alguma coisa! E você?! No quê você acredita?!

Gisela acorda assustada em seu quarto. A TV está ligada, e ela atrasada para a faculdade. Apressada, arruma seus livros e começa a se aprontar para sair. Sua TV fica de frente para a cama de solteiro. O quarto é comum. Além da cômoda com a TV e sua cama, apenas um armário de roupas para completar a simplicidade do lugar.

Fazia tempo que aqueles sonhos a perturbavam. Mas sempre tão ocupada e apressada, nunca parara para pensar no porque da freqüência deles. Ela sempre teve coisas mais importantes para se preocupar. Ano passado, era o até então desconhecido vestibular que lhe rendera um ano a fio de preparo e estudo condenado. Apesar de Gisela nunca ter se importado com coisas que aparentemente não lhe diziam respeito, ela sentiu que aquele ano tinha passado como uma profunda lacuna a ser preenchida.

Ao menos, seu objetivo fora concluído. Agora ela estava no segundo período de Comunicação Social em uma das mais concorridas universidades do seu estado. Querendo ou não, tinha a consciência de que poderia ter ingressado em qualquer outro curso de sua preferência. Porém, mesmo depois de um ano de curso, ela ainda não conseguia descrever o impulso que a fez optar por Comunicação Social. “Talvez porque gosto de noticiários, jornais e costumo assistir à novela das seis”, ela pensava, “Seria muito mais fácil se eu escolhesse a medicina. Um concurso público depois e sem mais preocupações.” Medicina é o curso que enche os olhos de qualquer mãe, e não era diferente com Dona Ana. Por isso, Gisela às vezes se esquecia do tamanho da aversão que tinha por sangue.

- Filha, você está atrasada pra faculdade de novo, berrava a mãe, assim você não vai chegar nem no segundo ano, querida!

- Tá tudo sobre controle, mãe, tudo sobre controle, disse Gisela passando feito um furacão pela cozinha enquanto terminava de se calçar.

Apesar de contrariada, era inevitável perceber que Dona Ana reluzia um feixe de satisfação e uma certa preocupação com as conquistas da filha.

- Você sabe que eu não gosto dessa história de atraso. É assim que começa. Daqui a pouco tá se perdendo no mundo que nem a maioria desses jovens que entram pra faculdade... Teu almoço está pronto aqui na cozinha!

Gisela agradeceu à mãe dando-lhe um beijo. Pegou seu almoço, ainda ajeitando a mochila nas costas e saiu às pressas de casa.