domingo, 17 de agosto de 2008

III - Pt. 1

Na faculdade era tudo muito diferente. Pessoas anormais com hábitos anormais, pensamentos anormais e feições anormais faziam parte do aprendizado cotidiano. Gisela foi obrigada a conviver com cenas que nunca pensou nem presenciar. “Um verdadeiro degradeé de moldes”, ela chamava. As roupas eram equivocadas, as palavras tinham cheiro de batom, os homens transpiravam esmalte, o palco podia ser comparado a um picadeiro e, dentro dele, Gisela não chegava a ser nem o número menos aclamado. O desdém fritava suas veias quando ela entrava lá. Pelo menos o lugar era agradável. Um bosque gigantesco com bancos aconchegantes. Dois chafarizes, por sinal sempre desligados, um à esquerda e outro um pouco mais à frente, na direita. As instalações do prédio de Comunicação eram precárias, mas nada de muito feio...

Ao passar pela lanchonete, avistou alguns companheiros de classe sentados na mesma mesinha de sempre. Aqueles tais ‘companheiros’ não se importavam muito em ficar dentro de sala, eram importantes demais pra isso. A fome e, novamente, o relógio vieram . Se Gisela parasse para comer, provavelmente perderia mais um tempo de aula. Enquanto julgava pela milionésima vez as figurinhas descoladas de sua turma, inconscientemente decidia se iria ou não parar pra almoçar, afinal ainda faltavam alguns passos até a escada que levava até sua sala.

Eram três moças e um rapaz. Maria, uma verdadeira maria-vai-com-as-outras. Ela não falava muito, parecia um ímã de geladeira que andava com eles para tentar enfeitar alguma coisa em sua vida; Lara e Paula, duas recém-namoradas. Paula sempre aparentava simpatia, coisa que chegava a irritar e Lara, totalmente o oposto, o que também irritava; e, por fim, Miguel, um metido a conquistador, por assim dizer. Ele tinha o rosto singelo e bem definido, assim como todo o corpo. Era bonito, mas seu constante ar de superioridade o tornava repugnante.

Gisela os achava patéticos...

Gisela queria ser um deles.

E então a fome venceu. Na mesma hora, ela mudou a direção de seus passos para uma mesa vazia. Tirou da mochila o almoço que sua mãe havia preparado e por algum motivo conseguiu esquecer o relógio. Apesar de tudo, ela conseguia se sentir bem ali. O que às vezes a incomodava profundamente era aquele clima apaziguador que os alunos faziam questão de tentar cultivar, principalmente os seus companheiros de classe. Laços fortes de amizade foram formados logo no primeiro período, e ela não participava de nenhum deles. O Luís sempre lhe fora o suficiente. Ao colocar a primeira garfada de comida na boca, Miguel a chamou para sentar-se com eles. Ele berrava como se quisesse chamar mais atenção do que o normal. Primeiro ela fingiu não ouvir, mas ele insistiu em continuar gritando seu nome e ela, para evitar maiores aborrecimentos, levantou meio desajeitada, pegou suas coisas e foi para a mesa deles como se estivesse se escondendo de alguma coisa:

- Não precisava chamar tão alto assim, eu estava a apenas duas mesas de distância.

- Você não viria se eu não fizesse escândalo, disse Miguel.

- E por que eu não viria?

- Você é quem devia saber. Desde o início do período você nos evita. Nós não somos bandidos, sabia?

- Eu sei que não, murmurou Gisela voltando a comer e tentando fugir do assunto.

- Ela deve ter seus motivos para não querer ficar conosco, disse Lara segurando na mão de Paula.

E tinha mesmo. Além dos defeitos berrantes de cada um deles, o namoro de Paula e Lara não a deixava confortável. Gisela tinha uma reação diferente a cada vez que presenciava algum afeto entre as duas. Ao vê-las de mãos dadas ali, ela sentira vontade de colocar pra fora as poucas garfadas de comida que já tinha engolido. Mas isso não era constante. Às vezes sentia profunda admiração por não se importarem com rabos de olhos e cochichos ao andarem juntas pelos corredores da faculdade. Outrora, um verdadeiro nojo tomava conta de Gisela só de pensar que elas se tocavam. E Lara notava isso. Começou seu namoro com Paula pouco antes do fim do primeiro período e, desde então, Gisela se escondia para falar com os quatro. Propositalmente, Lara acariciava Paula quando Gisela estava perto, só para desfrutar da perturbação dela.

- Pelo amor de Deus, disse Paula, não é à toa que a menina evita vocês... É tanto egocentrismo e hostilidade que qualquer um ficaria intimidado.

- E você pare de falar o nome de Deus em vão, Paula! Senão é aí mesmo é que ela cria um clube contra a gente.

- Em vão, Miguel? Vou à missa todo domingo, tenho que ter no mínimo o direito de clamar por Ele a hora que eu quiser.

- Fala assim como se fosse obrigada a freqüentar a igreja, disse Lara.

- Não sou, vou porque quero e você sabe disso. Por essas e outras, posso chamá-lo e com certeza não será em vão. Não concorda, Gi?

Outra coisa que a incomodava. Era inaceitável que alguém como a Paula pudesse se considerar crente com tanta convicção. Será que ela fechava os olhos para tudo o que fazia?

- Uhum, disse Gisela desviando o olhar para o noticiário da tarde, que passava na TV da lanchonete.

2 comentários:

Véia Arte Arterial disse...

Meu orgulho, rapá!

Quero tanto e tanto que continue a escrever.

=D

Anônimo disse...

No começo eu achei a cena um pouco comum de filmes norte-americanos, me lembrou até um vídeo clipe. Mas, como os personagens não são nada convencionais, a cena mudou de rumo e ficou interessante. Fico com a Gisela sobre esse grupinho, não me agrada nem um pouco.