terça-feira, 26 de agosto de 2008

IV - Pt. 1

As horas de aula se passam e Gisela se sente estática desde que entrara em sala. O professor falava e as palavras passavam pela sua cabeça como o mais fino fio de nylon: sem diferença alguma. Mais uma aula, outro intervalo de tempo jogado fora.As frases eram rascunhadas mecanicamente no caderno, como se ela estivesse em outra dimensão. Os tempos de aula se acabam e Gisela sai da faculdade. Dali a algumas horas o sol se poria, mais uma vez, pondo fim em um dia vazio.

Gisela checa seu celular na esperança de ter recebido uma mensagem inusitada ou uma ligação de número desconhecido, mas nada. No fundo de tela do seu celular, uma foto que Luís batera. Ao vê-la, lembra da situação delicada do amigo e decide, instantaneamente, visitá-lo antes de ir para casa.

Ao descer do ônibus, começa a repassar seu tão excitante dia. Ela costumava fazê-lo sempre, e ultimamente, todos tinham começos semelhantes: seus confusos e perturbados sonhos. Vozes sem rosto e aparentemente femininas travavam verdadeiras disputas verbais durante suas noites de sono. Após isso, hoje fora o atraso, a péssima notícia de Luís e os desordeiros da faculdade. Sem esquecer do comentário infame de Maria. “Quem precisa de tratamento é ela”, pensava Gisela. Por fim, as aulas eram sempre tão iguais que ela não se dava o luxo de repassá-las, era desnecessário.

Chegando no portão da casa de Luís, Gisela para por alguns segundos olhando para o interfone. Ela julgava o que seria mais correto: Tocar ou chamá-lo pelo nome? ; Dizer que levava a matéria ou que estava ali para consolá-lo? Sendo assim, tocou o interfone e chamou alto por Luís. Nenhuma resposta, seja no interfone ou nos berros. O portão se abre e Gisela entra. Quando chega ao andar de Luís, ela avista a porta de seu apartamento entreaberta. Gisela se aproxima cautelosamente. Entra na sala e avista Luís sentado de frente para a TV desligada com o controle remoto na mão esquerda.

- Achei que você viesse mais tarde, diz ele.

- Só vim até aqui para te deixar as matérias. Você vai à aula amanhã?

- Não sei. O velório será na parte da manhã, talvez dê tempo.

- Você precisa de mais tempo para você mesmo. Não se preocupe com as aulas, vou evitar atrasos para te repassar a matéria sem hiatos. Você sabe que pode contar comigo...

- Admiro a sua compaixão, mas essa tentativa de consolo foi um fiasco.

- Sabe também que sou péssima nisso, disse Gisela rindo. Posso me sentar?

- Claro, a casa é nossa.

Gisela senta ao lado direito de Luís e diz:

- Eu te admiro muito, sabia?

- Admiro a sua admiração.

- Ainda mais com esse humor tão imprevisível...

- Estou treinando para me formar em gelo. Quanto você cobra pela hora-aula?

- Para você, que é amigo, posso fazer um preço bem camarada.

- Correspondente à sua admiração?

- Vou analisar seu caso.

Apesar de continuar com aquele ímpeto característico na voz, o olhar de Luís se perdia fixado na TV desligada. Ele funcionava como uma marionete. Gisela gesticulava ao máximo enquanto falava, tentando desviar os olhos de Luís daquilo que parecia prendê-lo há muito tempo, mas as tentativas eram fracassadas. Até que, sem mais o que fazer, Gisela estala os dedos da mão direita à frente dos olhos dele, que subitamente parecem retornar à vida:

- O que foi?! ele pergunta assustado.

- Desculpa interromper seu transe, mas já estava farta de falar com o “Mister Robocop”.

- Eu que lhe devo desculpas, minha cabeça está no piloto automático.

- Nada mais do que eu esperava. O Márcio nos deus outros dois livros. Resenhas para o final do mês. Aqui estão os nomes, disse Gisela entregando um pedaço de papel com os títulos.

- Muito agradecido, dona moça. Mas isso não vai me servir mais.

- Não me diga que...

- Digo sim, tenho de arranjar um emprego. Não quero viver de favores. Amanhã, após o velório, vou até a corretora para vender essa joça e encontrar um aluguel barato.

- Mas você acabou de me dizer que tentaria ir à aula, falou ela abismada com o que ouvira.

- Pois acabo de mudar de idéia.

- E o que lhe fez mudar?

- Não sei, e também não me importa. É óbvio que é a melhor maneira de ajeitar as coisas. Fui à loja do papai, conversei com o sucessor dele no cargo. Disse que vai me arrumar um contrato de três meses. Estou desistindo, Gi.

- Admiro a sua desistência.

- Não é novidade para mim...

- Então vai viver de bicos? Indagou Gisela tentando mudar o ritmo da conversa.

- Pretendo.

- E quando os bicos acabarem...?

- Isso pode ficar pra depois. Tenho maiores preocupações presentes.

- Que tipo de preocupações?

- Mamãe quer que eu fique com o dinheiro. Segundo ela, era da vontade de papai.

- E isso é preocupação desde quando?

- Desde quando não quero mais depender da boa vontade alheia.

- Tenha dó, Luís! Você é filho, não inquilino!

- Mas estou quase lá...

Mania chata aquela de Luís. Complexo de inferioridade que chegava a dar nos nervos. Era um rapaz agradável e até certo ponto bonito. Os donos daquele olhar perdido eram um par de bilhas negras, que conseguiam, de maneira indizível, realçar sua pele levemente morena. O nariz notável, porém de contornos confortantes. Seus lábios pareciam desenhados à mão e um sorriso que lembrava muito o de seu pai.

- Agora é minha vez de desistir.

- Ora, mas se não é a “Senhora Persistência” largando de mão a sua primeira missão?!

- Já pensou em procurar contrato com o Bozo?

- Ele me acha bom demais, eu ofuscaria o brilho dele.

- É uma pena, você tem talento.

- Morrerei desconhecido, assim como outros tantos...

- E tirando este bate-bola cotidiano, como foi seu final de semana?

- Passei com meu pai... No hospital, murmurou Luís voltando seu rosto para a tela preta. E o seu?

- Ei, ei, rapaz! Minha pergunta foi infeliz, mas não me troque novamente, disse Gisela virando com as mãos o rosto de Luís de volta para sua direção. Meu final de semana foi bem. Tenho ido dormir cedo, quer dizer, cochilar cedo.

- Por que “cochilar”?

- Por causa de sonhos, pesadelos, sei lá como chamar isso...

- Freddy Krueger ou Peter Pan?

- Para mim, ambos soam como pesadelo.

- Tudo bem. Ahn, deixe-me ver... História sem Fim ou Cinderela?

- Acho que tá mais pra História sem Fim. Só que sem o Atreyu.

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